21.3.16

O republicano coroado

De passagem pelo Rio de Janeiro em 1909, o célebre escritor francês Anatole France, surpreendido com os múltiplos louvores à memória de Pedro II, perguntou: “Mas se o monarca de vocês era assim, por que razão o destronaram?” A razão foi uma só: para impedir a democratização do Estado e da sociedade brasileira.

D. Pedro II, o monarca mais culto de sua época, governou o Brasil com sabedoria, firmeza e paciência por quase meio século de reinado, ao cabo do qual deixava um legado invejável: unidade territorial consolidada, escravidão abolida, sistema eleitoral efetivo, judiciário independente, imprensa livre e corrupção governamental quase nula.

Só uma coisa não fez d. Pedro, segundo Mendes Fradique: a barba.

Alguns creem que as conquistas do Segundo Reinado se deveram mais às qualidades pessoais de Pedro que à eficácia do regime monárquico. Seja como for, o Exército, após a Guerra do Paraguai, e a oligarquia cafeeira, após a Abolição da Escravatura, voltaram-se contra o imperador, cuja imagem era desgastada sem trégua pela propaganda dos ativistas republicanos.

Parte desse desgaste se devia precisamente à condição republicana do monarca. O próprio d. Pedro não acreditava na monarquia; como escreveu em seu diário, preferiria ser um presidente da República, embora não imaginasse a república que o Brasil viria a se tornar. Sua corte era considerada triste, como ele mesmo, e cortes são pontos de encontro entre reis e sua base de sustentação, a nobreza.

A outra parte se devia à impopularidade do conde d’Eu, marido da princesa Isabel, e à condição física do monarca. Precocemente envelhecido para seus 64 anos, d. Pedro declinava a olhos vistos, assim como o regime. Sua saúde, sempre precária, tornara-se periclitante. A 13 de maio de 1888, na França, chegou a receber extrema-unção, tão improvável parecia o seu restabelecimento. Mas este ocorreu, e o imperador, de volta ao Brasil, tentou reformar o regime e viabilizar o Terceiro Reinado sob bases sociais mais amplas.

Para isso, recorreu aos políticos liberais, que defendiam, entre outras coisas, a ampliação do colégio eleitoral, o voto secreto, a proporcionalidade entre o número de deputados e a representação provincial parlamentar, casamento civil, extinção da vitaliciedade dos senadores, etc. O imperador convidou para chefiar seu novo ministério o abolicionista Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, que aceitou o desafio de realizar as propostas liberais.

Ao apresentar o programa à Câmara, o novo primeiro-ministro foi atacado pelos conservadores, que deram vivas à República. O deputado pernambucano Joaquim Nabuco lembrou que “o grosso das forças republicanas vem do descontentamento causado pela Abolição”. Quando um deputado conservador apresentou moção de desconfiança ao gabinete, esta foi aprovada por setenta e nove votos a vinte. Dom Pedro então dissolveu o Congresso — medida totalmente legal que lhe facultava o Poder Moderador, diferente de fechar o Congresso — e convocou novas eleições. Em agosto, os liberais obtiveram esmagadora vitória, elegendo 120 deputados contra sete conservadores e apenas dois republicanos. A certeza de que as reformas seriam aprovadas precipitou a debandada dos conservadores para as hostes republicanas, sobretudo após a última Fala do Trono, em que d. Pedro mencionou um projeto de reforma agrária que provocou calafrios nos latifundiários:

Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertida em lei, como julgar vossa sabedoria, a proposta para o fim de regularizar a propriedade territorial e facilitar a aquisição e cultura das terras devolutas. Nessa ocasião resolvereis sobre a conveniência de conceder ao governo o direito de desapropriar, por utilidade pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais.

É de surpreender que d. Pedro II tenha sido deposto?

Não contente com isso, o Governo Provisório exilou toda a família imperial. Nunca, nos cinquenta anos do Segundo Reinado, um só brasileiro fora banido.


Extraído do meu livro Guia politicamente incorreto dos presidentes da República, Editora LeYa, 2016.

2.12.13

Nazistas na lua

O humor brasileiro é, em geral, tão rasteiro e monopolizado por piadas racistas, homofóbicas e escatológicas, que humor inteligente não é considerado humor aqui. Deve ser por isso que a produção finlandesa-alemã-australiana Iron Sky, mesmo com o inepto título brasileiro Deu a louca nos nazis, nos é vendido ora como ficção científica, ora como filme de ação, ora como drama, ora como “cinema europeu” (isso lá é gênero?), mas nunca como comédia. No entanto, até o nome do diretor, Timo Vuorensola, é engraçado, para não falar no pressuposto desse filme independente já elevado à categoria de cult: nazistas teriam fugido para o lado escuro da lua em 1945, a bordo de discos voadores, e lá instalado uma base lunar em forma de suástica, aguardando a hora da vingança.

Essa hora finalmente chega em 2018, quando um astronauta negro norte-americano é capturado por nazistas em plena superfície lunar. É claro que vão se divertir muito mais os que souberem que de racista e cientista louco todo nazi tinha um pouco. Os nazistas realmente projetaram discos voadores, e a primeira coisa que estes nazistas lunares fazem é aplicar injeções alvejantes no infeliz recém-chegado, para deixá-lo mais “ariano”. A indústria bélica do IV Reich continua de vento em popa, graças a jazidas inexauríveis de hélio-3 nas entranhas da lua, mas a tecnologia nazista, embora tão aparatosa e monumental, continua sendo a da década de 40, de modo que o smartphone do negro transformado em albino consegue o que o computador nazista com uma quadra de largura jamais conseguiu: fazer funcionar, embora só por uns segundos, uma nave de guerra do tamanho de uma cidade, chamada Götterdämmerung, ou Crepúsculo dos Deuses (aliás, tudo no filme ocorre ao som de Wagner, por quem os nazistas tinham obsessão). Então Klaus Adler, o Schutzstaffel Obergruppenführer, ou segundo em comando após o Führer Lunar, decide vir à Terra para obter... smartphones.

Mandar um negro para a lua nada mais foi que uma jogada de marketing da presidente dos EUA, candidata à reeleição. O nome dela não é mencionado, mas é evidente que se trata da ultrarreacionária candidata republicana a vice-presidente de 2008, Sarah Palin, cujas gafes inacreditáveis ajudaram o democrata Obama a ser eleito o primeiro presidente negro dos EUA. No filme, este tem seu mote roubado pela presidente caçadora de alces: “Yes, she can”.

(Se o personagem de Sarah Palin como presidente dos EUA mete mais medo que os nazistas, a mim particularmente causou um calafrio pela semelhança com Dilma Rousseff. Ambas usam tailleurzinho vermelho, têm experiência com armas de fogo, concorrem à reeleição, são completamente estúpidas e atuam como fantoches de forças ainda mais sinistras que elas mesmas.)

Na presidente Palin, que passa o tempo se exercitando ao lado de um urso empalhado, temos o principal elemento do filme de Vuorensola, que é a crítica mordaz ao Partido Republicano. Sua marqueteira Vivian Wagner (sic), depois de parodiar a famosa cena em que Hitler esbraveja com seus subordinados no filme A queda (Der untergang), é seduzida por Adler e o leva à Casa Branca para que este exponha uma falsa proposta de paz; encantada, Palin incorpora à sua campanha a propaganda nazista, por sinal tão semelhante à republicana. Acompanhando Adler veio a deliciosa e bem-intencionada professorinha nazista Renate Richter (cujos aluninhos loiros têm nomes como Siegfried e Brunhild, e cujo noivado com Adler foi autorizado pelo Departamento de Pureza Racial do IV Reich), que, ao encontrar na rua um bando de skinheads, julga-os bons rapazes, leais ao Reich e a suas mães, pois portam o “símbolo do amor”, a saber, a suástica. Para ela, a cena em que Charles Chaplin brinca com o mundo em O grande ditador é o mais belo curta-metragem já produzido, e só desperta para a realidade sobre o nazismo após entrar num cinema norte-americano e assistir ao filme inteiro.



Adler mata o Führer Lunar, toma-lhe o bastão e aciona a mortífera Götterdämmerung usando o tablet roubado de Vivian, a quem aplicou um pé na bunda. Tem início o ataque dos nazistas à Terra, com discos voadores e zepelins, para absoluto deleite da presidente dos EUA, pois “todos os presidentes que iniciaram guerras no primeiro mandato foram reeleitos”, acrescentando que, do contrário, teria precisado bombardear a Austrália. Não contente com isso, nomeia sua marqueteira chefe de Estado-Maior, ao que Vivian, ansiosa por se vingar de Adler, embarca na nave SS George W. Bush e lidera o ataque das potências terrestres à base nazista lunar. Ordenando bombardeios, ignora os apelos de que há mulheres e crianças na base, sob a alegação muito familiar de que “os EUA não negociam com terroristas”. As potências terrestres derrotam os nazistas lunares apenas para iniciar uma nova guerra entre si pela posse do hélio-3, de que a lua está repleta. Ao término do filme, vê-se o lado escuro da Terra. Será mero acaso essa voltairiana comédia ter enfrentado dificuldades wagnerianas de distribuição fora da Europa?

7.6.13

Vou lhe mostrar o medo

Não foi com pequeno orgulho que introduzi Nikolaj Frobenius, um dos maiores escritores noruegueses da atualidade, ao leitor brasileiro. A escolha da sua obra de estreia no Brasil não poderia ser mais instigante: o romance Vou lhe mostrar o medo é nada menos que um suspense psicológico centrado na pessoa do grande poeta e contista norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), criador do gênero policial na literatura. 

Perpetuamente afligido pela pobreza e angustiado com a enfermidade da sua frágil esposa, o jovem poeta toma conhecimento de que assassinatos macabros, grotescamente semelhantes aos seus contos de terror e mistério, andam sendo cometidos. Quem será o criminoso, e qual o seu objetivo ao imitar dessa forma as histórias do autor de “O corvo”, e “Os assassinatos na rua Morgue”? Ficamos sabendo então que Poe conhece de longa data o monstruoso assassino, mas à polícia nega saber algo sobre ele, com medo de se comprometer. Paralelamente, o escritor é sabotado em sua carreira e nas suas tentativas de ascensão social pelo crítico literário Rufus Griswold, que, como Salieri em relação a Mozart na peça Amadeus, de Peter Schaffer — e no filme de mesmo título dirigido por Milos Forman —, dedica a Poe um misto de profundo ódio e incondicional admiração.

A vida de Poe é cercada de mistérios e circunstâncias inexplicáveis, as quais este romance procura explicar. É sabido, por exemplo, que Poe se mudou para Fordham no auge da sua carreira, mas não sabemos por que foi embora de Nova York, onde começava a fazer grande sucesso com suas obras. O que o teria compelido a deixar a metrópole no momento em que mais lhe convinha permanecer nela? Estaria fugindo de algo... ou de alguém? Outro fato conhecido é que, pouco antes de morrer (de causa desconhecida), ele balbuciava um nome, que ninguém até hoje conseguiu identificar: “Reynolds”. Quem era esse Reynolds?

Publicado em quase todos os países da Europa e traduzido em dez idiomas, este romance premiado, que discute os limites da criação literária e a responsabilidade moral da arte, foi recentemente plagiado por Hollywood, numa fraca adaptação para o cinema intitulada O corvo, estrelando John Cusack no papel de Poe, e inspirou a série de suspense The Following.


Nikolaj Frobenius nasceu em Oslo, Noruega, no ano de 1965. Autor de várias obras premiadas e traduzidas em dezoito idiomas, tornou-se mundialmente famoso como roteirista do filme sueco Insônia, que teve uma adaptação norte-americana em 2002, estrelando Al Pacino e Robin Williams.

17.6.12

Lulyoda

10.6.12

Vou lhe mostrar o plágio


Poe e Cusack: fala sério!
Eu era adolescente quando, em visita ao Chile, caiu-me nas mãos um belo volume das obras de Edgar Allan Poe em espanhol. Fiquei absorto pela leitura a ponto de mal perceber um tremor de terra que apavorou toda Santiago. Essa minha iniciação teve uma vantagem adicional: como eu nada sabia das histórias do mago do terror, experimentei a mais espantosa e gratificante surpresa ao concluir “Os assassinatos da rua Morgue”; a maioria já sabe quem era, ou o que era, o assassino desse conto com que o poeta Poe criou o gênero policial na literatura.

Os melhores autores (exceto dramaturgos, como Shakespeare) são sofrivelmente adaptados para o cinema. Nunca vi um filme bom baseado em textos de Poe. Aqueles protagonizados por Vincent Price são mais divertidos que assustadores. Eis que me surge então um filme baseado não em Poe, mas que tem Poe como protagonista. A trama é originalíssima: um serial killer comete assassinatos inspirados nas histórias tétricas do autor de “O corvo”. Infelizmente, porém, O corvo (2012) é péssimo, tremendo desperdício de uma ótima ideia. Não ficamos impressionados e nem surpreendidos pela identidade do homicida, que poderia ser qualquer pessoa. O atlético John Cusack não convence como o franzino e atormentado Edgar, que aliás nunca usou cavanhaque.

Bem mais intrigante é o mistério de como dois roteiristas medíocres — Ben Livingston, atorzinho de quinta que nunca escreveu nada antes, e uma autora de episódios do cretino Ghost Whisperer com o nome obviamente adotado de Hannah Shakespeare — podem ter concebido uma ideia tão boa, embora pessimamente aproveitada. A solução desse mistério, ao contrário do da rua Morgue, eu sabia de antemão: eles não conceberam coisa alguma. O autor da ideia sensacional foi o norueguês Nikolaj Frobenius, em seu romance Jeg skal vise dere frykten [Vou lhe mostrar o medo], de 2008. Hollywood faz essas coisas: paga a um autor para usar a obra dele e paga o dobro para que ele abra mão dos seus créditos no filme vindouro. Foi assim, parece, com o Simba de O rei leão, plágio descarado do desenho animado japonês cujo protagonista se chama... Kimba. Dar-se-á o mesmo com Frobenius? Do contrário, como explicar que não esteja todo dia bebendo aquavit com seus advogados?

Frobenius não foi apenas plagiado: foi mal plagiado. No seu livro sabemos desde o início quem é o criminoso e entendemos, tanto quanto possível, as motivações psicóticas dele. Edgar também sabe quem é, por isso mesmo nada pode fazer para impedir-lhe os macabros assassinatos. Trata-se de um romance psicológico que mescla realidade e ficção com notável competência, procurando explicar fatos inexplicáveis da vida de Poe à luz (ou às trevas) desse elemento fictício do homicida empenhado em tornar realidade a imaginação do homem que Jorge Luis Borges descreveu como “sublime criador de pesadelos”.

A boa notícia é que esse livro formidável será lançado nos Estados Unidos, revelando o plágio descarado aos norte-americanos, e, dentro de alguns meses, aqui no Brasil, pela Geração Editorial.

1.3.12

Caricatura traçada com sangue

Meu prefácio para o livro Hitler - Retrato de uma tirania, de Fernando Jorge.



Em 1963, na rua São Bento, em São Paulo, o então jovem escritor Fernando Jorge encontrou um amigo, o também escritor e político Israel Dias Novaes, diretor do Banespa e do jornal Correio Paulistano.



Os dois foram juntos a um café de esquina, onde Israel, conhecedor da predileção de Fernando por História, recomendou-lhe certo livro que lera recentemente. Tratava-se de uma biografia de Adolf Hitler, recém-publicada no Brasil, escrita por um autor alemão chamado Herman Zumerman (não Hermann Zummerman, na grafia alemã correta). O título dessa obra era Hitler – Anatomia de uma tirania, e na nota do editor dizia o seguinte:

O crítico Alfred Belsen escreveu, a propósito deste livro: “Zumerman é, indiscutivelmente, um grande escritor. Seu estilo é excelente, muito agradável, saboroso. Consegue prender a atenção do leitor do começo ao fim. Hitler – Anatomia de uma tirania pode ser considerado, com justiça, o maior livro que apareceu, nestes últimos tempos, sobre o homem monstruoso que desencadeou, no mundo, a Segunda Grande Guerra”.


Animado, Novaes elogiou o livro, por sua clareza de estilo e abrangência da pesquisa realizada, mas sobretudo pela tradução ímpar, creditada a um certo Raul Rodrigues.


Ao ouvir isso, Fernando Jorge caiu na gargalhada, e, diante da perplexidade do amigo, soltou esta bomba:


— Herman Zumerman sou eu!


O livro, na verdade, fora escrito em português pelo próprio Fernando, e publicado sob pseudônimo, por imposição de seu editor, o judeu búlgaro Eli Behar. Na realidade editorial brasileira de então, autores estrangeiros vendiam mais que os nacionais, de modo que Herman Zumerman, o crítico Alfred Belsen e o tradutor Raul Rodrigues haviam sido todos inventados por Behar, numa época sem internet, em que tais imposturas passavam facilmente por verdades.


O próprio Fernando Jorge conta, a respeito disso:


“Eu não queria de modo algum publicar o livro com outro nome que não o meu, mas o editor me fez uma proposta boa demais, e como eu ganhava muito pouco na Assembleia, havia acabado de me casar e precisava desesperadamente do dinheiro, acabei aceitando.”


Esta é a nova edição corrigida e atualizada — inclusive no subtítulo — de uma das primeiras biografias de Hitler escritas por brasileiro. A raridade dela é ainda maior pelo fato de que escrever sobre a vida de alguém, falar dos seus pais, sua infância e vicissitudes, é humanizar esse alguém, e na década de 60 o Führer não era considerado um homem, e sim a encarnação do mal.


A distância do pós-guerra, bem como novos estudos históricos conduzidos com mais critério que emoção, têm possibilitado uma compreensão melhor da pessoa do líder austríaco, despojando-o do elemento sobrenatural e julgando-o no contexto de seu próprio tempo. O que em nada altera o fato de ele ter sido um monstro. Não o diabo, apenas um homem, sim, embora o pior de todos que já comandaram uma superpotência.


Poucos personagens históricos são tão indefensáveis quanto o Führer do Terceiro Reich. Com uma mistura de maquiavelismo político, monomania e falta de escrúpulos, ele seduziu uma nação, apelando aos seus instintos mais primitivos e mesquinhos, precipitou o maior conflito armado de todos os tempos e causou milhões e milhões de mortes. Nenhum outro indivíduo foi diretamente responsável por tanta destruição, a tal ponto que, para chamar um personagem público de ogro autoritário e/ou criminoso, basta pintar-lhe um bigodinho de Hitler numa foto. Nenhum outro ditador se enquadra tão bem nas características principais do psicopata, segundo o Ato de Saúde Mental do Reino Unido de 1983:


A) Incapacidade de estabelecer relacionamentos afetivos (Hitler amou somente a sua mãe e a sua cadela, à qual fez a suprema caridade de envenenar quando se suicidou).


B) Propensão a ações altamente impulsivas e irracionais (a marca registrada da trajetória política dele, cujo sucesso inicial se deveu a uma capacidade suprema de manipulação mesclada a uma ideologia antissemita sem qualquer base factual).


C) Falta de sentimento de culpa ou de responsabilidade pelas próprias ações.


D) Incapacidade de aprender de experiências adversas.


Entretanto, para quem ignora quem ele foi e todo o mal que causou, Hitler parece apenas ridículo, com seu bigode quadrado, topete pré-emo e gestual furibundo. Seus contemporâneos, antes que ele chegasse ao poder, achavam-no esquisito e algo excêntrico, mas inofensivo. O genial Charlie Chaplin foi um dos primeiros a explorar a qualidade truanesca da pessoa do Führer, ao retratá-lo na melhor sátira política da história do cinema, O grande ditador, de 1940.




De fato, quase todos os ditadores são caricaturas vivas. Não só Hitler parecia um Carlitos mal-humorado, como seus amigos Stalin, Mussolini e Franco eram nanicos; o Duce, em particular, não passava de um tampinha cabeçudo, de uniforme extravagante e metido a machão. A verdade é que, precisamente por serem caricatos e caricaturáveis, esses homens perseguiram tão avidamente o poder, como forma de superar seus monumentais complexos de inferioridade. Porque maçantes, não foram considerados perigosos, e isso possibilitou que se tornassem caricaturas desenhadas com sangue, em virtude do poder mortífero que vieram a abocanhar.


Finda a guerra, com a extensão dos crimes nazistas revelada e as imagens aterradoras do Holocausto divulgadas, o chocado público parou de rir do topete do Führer e, pulando para o outro extremo, fez dele um bicho-papão. Aos sobreviventes dos campos de extermínio não bastava mais o escárnio, era necessária a execração aos assassinos. Assim, o líder nazista tornou-se tabu, uma figura tão nefasta, que quanto menos se falasse dele, melhor. Relativamente pouco se escreveu sobre a sua vida — à exceção de Hitler: a study in tyranny, do inglês Alan Bullock, publicado em 1952 — pois, como eu já disse, biografar é humanizar, e ninguém queria saber de um Hitler humano. Traumatizada pelo delírio nazista que a destruiu, a Alemanha só gerou a sua primeira grande biografia do Führer, escrita por Joachim Fest, em 1973, dez anos depois desta de Herman Zumerman, aliás, Fernando Jorge.


Talvez a obra cinematográfica mais típica desse processo de satanização seja o filme baseado num romance de terror, Os meninos do Brasil, em que a mera existência de clones infanto-juvenis do Führer constitui uma futura ameaça ao planeta. Não por acaso, o autor desse livro foi o judeu nova-iorquino Ira Levin, competente criador de diabos, dentre os quais o mais notório (e assustador) foi O bebê de Rosemary.


Caricatura de David Levine
Uma tentativa corajosa e impagável de ridicularizar essa demonização de Hitler, reconduzindo-o à sua condição caricatural, foi o filme de 68 (depois adaptado como musical) Primavera para Hitler, onde o cineasta Mel Brooks, embora judeu, o retrata como uma simpática bicha louca de uma peça propositalmente destinada a chocar a Jew York do pós-guerra, mas que, contra todos os prognósticos, se torna um retumbante sucesso.


Esses filmes foram, no entanto, exceções à regra: controlada por judeus, Hollywood basicamente ignora Hitler até hoje. Nas décadas de 70-80, o Führer foi protagonista de algumas produções europeias de baixo orçamento, ainda que com atores da estatura de Alec Guinness e Anthony Hopkins. O telefilme inglês de 2003, Hitler – A ascensão do mal, repisa a imagem do tirano em seus primórdios como um jovem monstro desprovido de qualquer humanidade.


No ano seguinte, porém, o excelente filme alemão Der Untergang, sobre as últimas horas do Führer, chocou milhares de espectadores ao caracterizá-lo não como o energúmeno que vemos nos documentários, vociferando feito um possesso em um microfone, e sim como um homem frágil, precocemente envelhecido e com avançado mal de Parkinson, que dispensa pequenas gentilezas às secretárias e agradece à cozinheira pela última refeição. Se para os parentes dos mortos em Auschwitz e Dachau o Hitler Carlitos havia perdido a graça, o Hitler que diz “obrigado” era intolerável. Mesmo pessoas sem cicatrizes da monstruosidade nazista, mas conhecedoras de sua extensão, reagiam de forma muito passional a qualquer tinta menos negra no retrato do genocida-mor do Ocidente. É como se temessem o menor grau de identificação com tão assombroso personagem. A ilação inconsciente que se faz nesse caso é: “Se ele era humano como eu, eu posso ser um monstro como ele”.


Não há utilidade alguma em reduzir Hitler a um bigodinho tolo, muito menos em elevá-lo a Príncipe das Trevas. É importante preservar a dimensão humana do Führer para não nos esquecermos que ele não foi um fenômeno isolado e que, portanto, pode muito bem ressurgir em qualquer lugar, a qualquer momento, na pessoa de qualquer ditador ressentido e carismático. Se a trajetória do líder nazista nos serve de algo, é para nos alertar contra líderes políticos e religiosos contemporâneos de viés populista, considerados inofensivos precisamente pelo elemento algo burlesco, bonachão ou até cômico em suas personalidades, na sua aparência ou modo de falar, mas que, uma vez dotados de poder, seja por meio de eleições, roubo ou golpe de estado, não hesitarão em tirar o chapéu-coco e envergar a suástica.


Conhecer a história de Hitler e do nazismo nos dota de um termômetro para auferir a temperatura antidemocrática dos nossos próprios governos. Acaso temos políticos afeitos ao personalismo? Que violam sistematicamente promessas de campanha, ou que, por mais democráticos que se autodefinam, entregam-se a arroubos autoritários, exasperam-se com críticas e procuram a todo custo calar a imprensa, o TCU e outros órgãos vigilantes do regime democrático? Que são amigos de ditadores? Que gritam e gesticulam demais em comícios, a fim de usar o povo ignorante como massa de manobra? Se a resposta for afirmativa para alguma dessas perguntas, não estamos muito mais seguros que a República de Weimar, e todo cuidado é pouco.


29.1.12

Sublime anonimato

A discussão sobre quem escreveu as peças teatrais e poemas atribuídos a William Shakespeare começou logo após a morte deste e já dura 400 anos. Numerosas, ainda que circunstanciais, as evidências contra a autoria do ator inglês vão da inexistência de manuscritos seus ao fato de ele não ser letrado o bastante para gerar tão erudita obra. Candidatos à identidade posta em dúvida variam do filósofo Francis Bacon ao dramaturgo Christopher “Kit” Marlowe.


Não é difícil imaginar o escândalo que tais teorias provocam no empoeirado establishment acadêmico, na rentável indústria do turismo em Stratford-upon-Avon, cidade natal de Shakespeare, ou simplesmente nos acostumados ao ícone semicalvo de enorme colarinho. Os ingleses, de um modo geral, não se incomodam que o autor verdadeiro seja outro John Bull; inadmissível seria que não fosse inglês.



A mim essa polêmica interessa apenas como arte, e em tal capacidade Anônimo, o primeiro filme a botar a colher na briga, é arte da boa. Com a fortuna que ganhou fazendo cinema catástrofe para Hollywood, o diretor alemão Roland Emmerich nos deu em Anônimo a sua melhor película. Nela, os recursos técnicos usados para explodir a Casa Branca, congelar Nova Iorque, ressuscitar Godzila e destruir o mundo, serviram para reconstituir a Londres elisabetana com toda beleza e fidelidade possíveis. Embora financiado por dólares, o filme traz apenas britânicos no elenco, garantindo a impecabilidade da pronúncia e da interpretação.



Anônimo advoga a famosa tese de que Edward de Vere, conde de Oxford, escreveu os mais soberbos monumentos da literatura inglesa, encenando-os no anonimato porque não ficava bem um nobre se dedicar a atividades tão vis como teatro. Will Shakespeare, em contrapartida, é um rufião iletrado que não só se faz passar por autor dessas obras-primas, como ainda extorque dinheiro do conde em troca de não lhe revelar o segredo. Afinal, o patético Polônio, apunhalado em Hamlet, não passa de uma caricatura do puritano William Cecil, conselheiro da rainha, o que poderia custar a de Vere uma temporada na sinistra Torre de Londres. Mercenário, Will chega a assassinar Kit Marlowe, que estava prestes a descobrir a verdade sobre a impostura. O artista puro e incorruptível encontra sua voz no teatrólogo Ben Johnson, autor de Volpone, que inicia o filme arriscando a vida para proteger os originais da obra de de Vere das garras do arquivilão corcunda Robert Cecil, filho de William e inspirador do grotesco personagem Ricardo III.




Anônimo trata a monarquia britânica com a irreverência que ela merece e que nenhum cineasta inglês parece ter, a julgar pelas recentes baboseiras patrióticas A rainha e O discurso do rei. Creio ser esse o filme que mais justiça fez à algo enigmática Elisabete I, a Rainha Virgem (“ela é tão virgem quanto eu sou católico”, comentou o huguenote Henrique IV). Bem distante da heroína celibatária das estúpidas hagiografias protagonizadas por Cate Blanchett, e da onisciente deus ex machina de Judi Dench em Shakespeare apaixonado, a Elisabete de Emmerich — regiamente interpretada por Vanessa Redgrave na velhice, e na juventude pela filha de Vanessa, Joely Richardson — é uma mulher de carne e osso, amante da vida, do teatro e dos amantes que o seu poder atrai, embora não tanto dos bastardos que tem com eles.






Curiosamente, embora reduza Shakespeare a um impostor, chantagista e homicida, o filme é um hino de amor ao teatro shakespeariano, assim como o romance Borges gibt es nicht, de Gerhard Köpf (outro alemão), é uma das maiores homenagens já prestadas ao genial Jorge Luis Borges, apesar de este ser, no livro, um reles ator a serviço do argentino Bioy Casares, verdadeiro criador da obra inigualável que o mundo inteiro atribui a Borges.




A despeito das declarações bombásticas do cineasta sobre o Cisne de Avon ser uma fraude, e cujo objetivo não é outro senão vender o seu peixe, a mensagem sutil de Anônimo é o postulado de Oscar Wilde: “revelar a arte e ocultar o artista é o objetivo da arte”. Ou seja, não importa quem criou a obra shakespeariana (que inclusive pode ter mais de um autor, como a de Homero); o que importa é conhecê-la. Somos muito personalistas, e o personalismo é nefasto, pois origina aberrações como religiões, cultos a políticos populistas, partidarismos e sectarismos. A própria Bíblia, embora escrita por dezenas de autores desconhecidos, foi o best-seller do Ocidente durante séculos só porque o atribuíram a um único autor: Deus.




É inevitável comparar essa fita com a outra que mais explorou a persona do dramaturgo inglês. Filme leve para ser assistido com a família — e por essa razão, mais que por suas qualidades, premiado com sete Oscars —, Shakespeare apaixonado, de John Madden, seria como uma das próprias comédias shakespearianas, ao passo que Anônimo equivaleria a uma das tragédias, nas quais o Bardo atingiu a maturidade poética. Uma coincidência irônica é que Kit Marlowe, no filme de Madden, também acaba morto por Will, embora por acidente, ou ao menos é o que este pensa.




No prólogo de Anônimo, o grande ator Derek Jacobi — que fez o mesmo papel de coro no excelente Henrique V de Kenneth Branagh — oferece ao espectador uma história diferente, “mais sombria” que a tradicional, “sobre um palco conquistado e um trono perdido”. Esse trono perdido é a surpresa final do filme.



Anônimo não ganhará tantos Oscars quanto Shakespeare apaixonado, porque uma comediazinha romântica terá sempre mais audiência que o mais sublime drama. Quer se goste do filme de Emmerich ou não, ele tem o mérito inegável, já na sua concepção, de despertar curiosidade sobre as peças e poemas que menciona — Hamlet, Henrique V, Sonho de uma noite de verão, Como gostais, Macbeth, Ricardo III, Vênis e Adônis, etc. — nas pessoas que não os conhecem, lançando talvez a semente para uma nova geração de admiradores da obra shakespeariana (ou “deveriana”). Da obra, e não do homem, quem quer que este tenha sido.

5.12.11

O tirano que amamos odiar



16.10.11

Mais uma do professor Leodegário



Um cineasta de visão








1.4.11

Titília e o Demonão

PREFÁCIO

Apenas a maior descoberta de documentos da História do Brasil


No segundo semestre de 2010, por um desses acasos que só podem ser explicados como intervenção divina — sendo a divindade em questão Clio, a musa da História —, nada menos que 94 cartas do imperador Pedro I à sua célebre amante, a marquesa de Santos, escritas entre 1823 e 1827, posteriormente desaparecidas e esquecidas, foram achadas quase por acidente, em um obscuro museu norte-americano, por um pesquisador brasileiro com alma de detetive, faro de sabujo e paciência de Jó.

(A propósito, quantos tesouros brasileiros jazem sepultos não em sítios arqueológicos, mas em coleções, arquivos e bibliotecas, assolados não por ladrões de sarcófagos, maldições e tempestades de areia, e sim por traças, negligência e umidade? Oxalá que a descoberta do Paulo Rezzutti estimule outros pesquisadores a partir em busca desses tutancâmons de papel.)

Se existem mulheres ocasionalmente elevadas à categoria de “namorada do Brasil”, só uma pode ser chamada de “amante do Brasil”: Domitila de Castro Canto e Melo, a jovem divorciada cujo tórrido affair com dom Pedro I constitui o maior romance da nossa história. Todos os países gostam de ter o seu no imaginário nacional, mas a correspondência do imperador brasileiro com a sua amásia paulista contém um elemento pícaro e erótico que chocaria Abelardo e Heloísa e deixaria ruborizados quaisquer casais anteriores a John Lennon e Yoko Ono. Napoleão, quando muito, mencionava a “florestinha negra” de Josefina em carta para a própria; dom Pedro fala da “tua coisa”, referindo-se ao próprio pênis, e das vicissitudes sofridas por este (carta 70). Em outra ocasião (carta 24) diz que naquela noite irá “aos cofres” de Domitila, eufemismo para aquilo mesmo.

Talvez o mais divertido destas missivas sejam os insistentes protestos de fidelidade do mulherengo coroado, tentando acalmar as crises de ciúme da amante, sobretudo por sabermos que ele teve outras mulheres durante seu caso com Domitila, inclusive a própria irmã desta!


Eu já não namoro a ninguém depois que lhe dei minha palavra de honra, e assim não lhe mereço teus ataques (carta 50).


Mas os ciúmes dele por Domitila não são menos intensos, a ponto de o Libertador reclamar do número de carruagens na casa da marquesa, que lhe parece suspeito (carta 61). De outra feita, o monstro de olhos verdes deve tê-lo transtornado a tal ponto, que ele precisou fazer mea culpa depois de cometer algum desatino:


Eu conheço o mal que ontem fiz, e como honrado, e seu verdadeiro amigo, lhe peço perdão. Se o amor que temos um ao outro é verdadeiro, devemos perdoar suspeitas mal fundadas ou, por outra, ciúmes vagos sem fundamento (carta 38).


Esses transbordamentos passionais não deixam de ser temperados com lirismo:


Ontem mesmo fiz amor de matrimônio para que hoje, se mecê estiver melhor e com disposição, fazer o nosso amor por devoção (carta 9).


Difícil não sorrir ante as queixas dele por Domitila, mal-humorada, não o chamar conforme o tratamento carinhoso da época:


Minha boa senhora: não posso entender a razão de me não responder chamando-me de filho como eu chamo a Va. Ea. e espero que Va. Ea., mitigando alguma coisa seu gênio hoje irritado sem razão, me responda pondo no frontispício da carta Filho... (carta 64)


Quase todas as cartas são assinadas pelo “fiel, desvelado, constante e agradecido amante”, mas o vocativo e a assinatura variam conforme a temperatura da paixão. Quando esta se encontra no auge, ela é “Titília” e “Meu amor”, ele é “O Demonão” ou “Fogo Foguinho”; à medida que vai esfriando, ele passa a ser “O Imperador” e “Pedro”, enquanto ela se torna “Filha” e “Querida Marquesa”.

As epístolas desta edição em sua maioria não vieram datadas, mas o profundo conhecimento histórico do Paulo Rezzutti supre esta falta. “As formas como d. Pedro chama sua amante e como ele assina, somadas a fatos históricos e situações familiares conhecidas mencionadas nas cartas, permitiram, na maioria das vezes, identificar o ano e até a quinzena do mês em que foram escritas.” Além das 94 cartas que ele descobriu na Hispanic Society of America, em Nova Iorque, outras 17 valorizam o final deste volume em forma de anexos, algumas inéditas, outras não, todas transcritas diretamente dos originais, corrigindo inexatidões anteriores.
Entre esses anexos estão algumas das poucas cartas de Domitila a d. Pedro de que temos notícia. O Rei-Soldado destruía várias delas, se não todas, por precaução, pedindo à amante que fizesse o mesmo com as dele (ver o comentário da carta 75). Para felicidade nossa, Domitila não obedeceu ao amante imperial, e graças a essa desobediência temos praticamente todas as cartas que o “Demonão” escreveu para a “Titília”.


Constatar a profunda humanidade do imperador do Brasil é o maior deleite que a leitura de suas cartas à amante proporciona. Muitas são tão prosaicas que poderiam ter sido escritas por qualquer plebeu à sua pequena. Por diversas vezes o soberano pergunta simplesmente como ela tem passado, ora anuncia que irá vê-la à noite, ou que está lhe mandando, junto com a missiva, frutas, flores, goiabada ou “bolos de cutia” (carta 26). Também comenta o tempo todo, pai carinhoso que é, sobre a saúde dos filhos, tanto os legítimos quanto os bastardos.


Desse estilo nada protocolar, totalmente informal e gramaticalmente deficiente do monarca, jorra um manancial de fatos históricos (devidamente identificados e esclarecidos nos comentários), além de descortinar, por meio dos detalhes comezinhos, um rico painel da vida cotidiana e dos costumes do Brasil durante o Primeiro Reinado.

Na Europa as amantes, sobretudo na França, eram quase uma instituição monárquica, visto que reis se casavam por razões de Estado e nunca com quem queriam. Para limitar-nos à monarquia portuguesa, Pedro I de Portugal teve por amásia Inês de Castro — em cuja árvore os genealogistas a soldo do imperador brasileiro quiseram a todo custo enxertar Domitila — e dom José I, bisavô do nosso dom Pedro, frequentava a marquesa de Távora. Discrição, no entanto, era uma condição sine qua non para a existência dessa instituição equívoca, e as hipocrisias, mesmo institucionais, são mais difíceis de ocultar sob a claridade intensa dos trópicos. Para piorar, dom Pedro não era homem dado à discrição, nem tampouco Domitila. Não contente em trazê-la para a corte no Rio de Janeiro e torná-la dama camarista da imperatriz Leopoldina — uma austríaca bondosa, culta e pouco sensual —, ainda fez criar seus filhos com Domitila ao lado dos meios-irmãos legítimos.

Inicialmente d. Leopoldina parece ter feito vista grossa a essa ligação adulterina. O diplomata austríaco Mareschal achou mesmo que a extrema condescendência da consorte imperial, interpretada pelo marido como indiferença, havia provocado a escâncara do romance. O fato é que a coisa se tornou tão ostensiva, que ela não mais pôde fingir ignorar o óbvio, e quando faleceu logo depois, aos 29 anos, não poucos acusaram os dois adúlteros, mas sobretudo a marquesa, “esse monstro de perfídia e iniquidade”, de haver assassinado a gentil imperatriz (ver anexo 12).


Após a proclamação da República, em 1889, o escândalo dessa aventura extraconjugal foi devidamente afiado com distorções para ser usado à guisa de baioneta pelos republicanos na guerra de propaganda contra a monarquia deposta. Pelos arroubos eróticos na sua correspondência privada, dom Pedro I foi rebaixado de imperador a sátiro e entronizado num penico. A marquesa de Santos, já demonizada em vida por não se conformar à sina das mulheres do seu tempo — a saber, a de meros apêndices dos maridos, por piores que fossem —, foi acusada de atuar nos bastidores do poder imperial como uma espécie de madame Pompadour tupiniquim, provocando a queda do ministro José Bonifácio e a dissolução da Assembleia Constituinte, ambas em 1823, e até mesmo a abdicação de dom Pedro, a 7 de abril de 1831!

Esses exageros, simplificações e calúnias têm sido repisadas ao longo do século XX, geralmente por historiadores menos interessados em informar do que em entreter os leitores com detalhes pitorescos e até escatológicos — como a repetição, ad nauseam, de que dom Pedro estava acometido por diarreia ao proclamar a Independência na colina do Ipiranga —, ou por professores de História do Brasil de [de]formação marxista, obstinados em enxovalhar todos os vultos históricos não identificados por eles com “o povo”, essa entidade que tanto idealizam.


É por causa de tais deturpações, causadas por ideologia ou simplesmente pela ignorância ou despreparo, que os amantes da veracidade histórica precisam dar graças a Clio por ter confiado essas 94 cartas inéditas à seriedade, à erudição sólida e aos escrúpulos do Paulo Rezzutti. Não só a transcrição que ele faz das missivas é impecável, como também o são os comentários com que as explica e lhes dá contexto, proporcionando ao leitor uma aula enriquecedora e muitíssimo agradável sobre um dos períodos — e sobre alguns dos personagens — mais fascinantes da nossa História, sem concessões aos que apenas desejam vê-la como registro de fofocas, gracinhas e boatos, nem tampouco à rigidez de um academicismo enfadonho.


As fontes de pesquisa do Paulo são as bibliotecas, os arquivos públicos, os documentos originais, as fontes primárias em suma, deixando as fontes secundárias (livros tardios sobre o tema) na posição que é delas, secundária, ao contrário de certa corrente de autores que tratam a História do Brasil como fast food, via de regra jornalistas sem tempo ou paciência para consultar fontes primárias, e que por causa disso produzem jornalismo histórico ao invés de História.


Mais que qualquer coletânea de cartas de dom Pedro publicadas antes, a da presente edição derruba certos mitos, como o já mencionado de que a marquesa manipulava o soberano. Ora, ele próprio desmente tal visão, desculpando-se por não poder atender ao pedido da amante de nomear certo amigo dela para algum cargo no Exército (carta 29).


Este livro traz outras contribuições importantes ao estudo do Primeiro Reinado, como a suspeita bem fundada de que a última carta de dona Leopoldina, em que a imperatriz agonizante acusa Pedro e Domitila de haverem causado a sua morte, é muito provavelmente uma fabricação dos inimigos do primeiro imperador.


Doravante nenhum estudo abrangente sobre o Libertador do Brasil poderá prescindir do exame destas cartas inéditas, escritas sob o calor das mais humanas emoções, o amor e a paixão, por um dos mais humanos vultos da nossa História.

30.3.11

Apologia aos nerds

Não dá para entender o que tanta gente viu na Rede social, de David Fincher. Três Oscars e 8 indicações! Fala sério! Por um filme escuro, com uma trilha sonora chatinha — oscarizada! —, sobre um punhado de universitários que falam e digitam como metralhadoras coisas incompreensíveis para quem não pertence à tribo nerd! Oscar de roteiro adaptado? Mas se a história é igual à do telefilminho de 1999 Pirates of Silicon Valley, que trata do início da carreira de Steve Jobs e Bill Gates, os funerdadores da Apple e da Microsoft, contribuições, aliás, bem mais relevantes que o Facebook, retratado no filme de Fincher como uma nova imprensa e o pirralho Zuckerberg como um novo Gutenberg. O enredo é o mesmo: adolescentes começam a trabalhar juntos, ganham dinheiro, então o mais nerd e inescrupuloso de todos — mostrado como gênio — passa a perna nos demais, que o processam em milhões de dólares, e todos ficam bilionários no final. Bons tempos aqueles em que genialidade era criar ou inventar algo extraordinário, e não fazer um bilhão aos 19 anos..

Li que o Fincher vai dirigir a versão norte-americana do best-seller sueco Os homens que odiavam as mulheres (essa é a tradução correta, não a da Cia das Letras), de Stieg Larsson. Já de cara achei o elenco hollywoodianamente artificial: a soturna hacker Lisbeth Salander vai ser interpretada por uma bonitinha qualquer chamada Rooney Mara — que provavelmente está dando para o Fincher —, e o jornalista barrigudo Blomkvist vai ser o 007 Daniel Bombado Craig. Típico. Ruben Blades, ator latino, disse que se Hollywood fizesse um filme sobre Bolívar, colocaria um par de costeletas no Schwarzenegger. Eles nunca aprendem.

17.3.11

Lançamento do livro "Titília e o Demonão"

Ao longo de quase dois séculos, ficaram escondidas dos olhos do mundo 94 cartas íntimas do imperador dom Pedro I para a célebre marquesa de Santos, com quem manteve um turbulento caso de amor que constituiu o mais ruidoso escândalo da sua época e o maior romance da nossa história. Agora, transcritos e comentados com erudição ímpar, esses documentos profundamente humanos e de incomparável valor histórico nos mostram um jovem monarca impetuoso e apaixonado, dono de aguçado senso de humor, que escreve coisas libidinosas à amante, tenta acalmar as crises de ciúme dela ao mesmo tempo em que esbraveja, movido pelo mesmo estado emocional, mas também revelam um homem atencioso para com a mulher amada, os desabafos dele, sua preocupação com os problemas brasileiros, seu interesse e carinho pelos filhos, permitindo-nos conhecer de fato a personalidade do líder que promoveu a nossa Independência, ao mesmo tempo em que descortinam, por meio de detalhes prosaicos, um rico painel da vida cotidiana e dos costumes do Brasil durante o Primeiro Reinado.

31.12.10

Glauco Rocha


20.12.10

Professor Leodegário


















24.11.10

O Brasil reduzido a Ilha de Caras

Por Nilson Gomes, publicado originalmente na Revista Bula

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Laurentino Gomes populariza personagens vitais para o País, mas para aproximar o povo de seus heróis, não precisava abusar da escatologia, como se fosse um Ratinho fazendo reportagens no programa do Datena
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O jornalista Laurentino Gomes lança mais um livro, 1822, que certamente vai encher as burras da Editora Nova Fronteira e encher de informações inúteis os burros de todas as fronteiras. São 352 páginas que, a pretexto de detalhar a Independência do Brasil, seus personagens e ações, começa e termina com escatologia: D. Pedro soltou o Grito do Ipiranga em meio a uma crise de diarreia e não muito depois era obrigado a voltar para a Europa carregando pouco mais que penicos. A obra (45 reais nas livrarias, 36 via internet) segue o êxito de tiragens de 1808, acerca da vinda da família real portuguesa para o Brasil, e antecede 1889, que certamente o autor já está preparando sobre a Proclamação da República. Com a ideia de seduzir o comprador do livro, supostamente um jovem sem o hábito da leitura, o autor abusa dos detalhes que considera engraçados, como se o Brasil tivesse se tornado um país por uma série de historietas folclóricas, um saci bípede de 8 milhões de quilômetros quadrados. A “descoberta portuguesa”, inicialmente chamada de Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz, é tida no livro como uma imensa Ilha de Caras. Caras-de-pau. Pau-brasil, logicamente.
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Ex-editor e repórter de O Estado de S. Paulo e Veja, em 1822 Gomes é um Ratinho trabalhando para o programa do Datena, enviado especial ao passado. Valoriza sobremaneira o disse-que-disse, às vezes ancorado em outro disse-que-disse —uma informação não se torna verdadeira apenas por ser antiga ou pela ausência de quem a desminta, pois o caso dos historiadores é diferente das ciências jurídicas: em dúvida, pró-lixo. Em geral, Gomes tem fonte até demais, justifica em excesso. A rigor, tem-se um ajuntamento de livros, uma coletânea, e quase nada de descoberta do próprio autor. Dá crédito a quase 200 autores/obras, praticamente um a cada folha do livro, com média de quase duas citações por página de texto.
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O principal defeito é o enfoque no prosaico. Para Gomes, D. Pedro foi beneficiado pelo acaso, envolto numa bolha de sorte que o acompanhou sempre. Mérito, mesmo, nenhum além de estar na hora certa, no lugar certo para entrar na vida e sair nos livros de História. O desligamento de Portugal? Nada a ver com Pedro, mas com a mulher, hoje mais conhecida nos desfiles de Carnaval, madrinha de bateria da escola de samba Imperatriz Leopoldinense. Escreve Gomes na página 136: “Do ponto de vista formal, a Independência foi feita por Leopoldina e Bonifácio, cabendo ao príncipe apenas o papel teatral de proclamá-la na colina do Ipiranga”. E o reconhecimento internacional à liberdade do Brasil? Também nada a ver com Pedro: “Leopoldina se empenhou a fundo no reconhecimento da autonomia do novo país pelas cortes europeias, escrevendo cartas ao pai, imperador da Áustria, e ao sogro, rei de Portugal”. Para manter o nível do raciocínio de Gomes, um esclarecimento: o Bonifácio citado acima é José Bonifácio de Andrada e Silva, o Boni, ex-diretor da Globo e pai do Boninho, aquele do BBB, que agora tem até deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro.
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O subtítulo do livro é “Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil — um país que tinha tudo para dar errado”. Completa na última capa: “E, no entanto, deu certo...”. Refere-se a Bonifácio, Leopoldina e Lord Cochrane. Essa de “criar o Brasil” é a mesma tese esposada no livro anterior, 1808, quando o pai de Pedro, João, teria desempenhado semelhante papel. A conferir se no próximo tomo o Brasil será fundado novamente, talvez por Pedro II. A manter o ritmo de datas importantes, haverá um 2002: o atual governo já demonstrou por a+b o equívoco de Gomes ao atribuir importância, ainda que pequena, a Pedro e João, pois sabe-se que quem fundou o Brasil na verdade foi o presidente Luís, inventor da pólvora, da roda, da imprensa, da penicilina e do Viagra, além de cantor, ator e jogador de futebol.
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Mas a tara por celebridade e coincidências não invalida a obra. É bem escrita, sem a chatice do academicismo, para ser saboreada em dez horas de leitura. Tenta conquistar os avessos a livro com vocabulário comum, títulos chamativos, capítulos curtinhos e ilustrações, muitas ilustrações, três cadernos de ilustrações. Nelas, Gomes prova que o quadro O grito do Ipiranga, na qual Pedro Américo “retrata” o instante da Independência, não apenas é uma fraude à história, é plágio de Napoleão em Friedland, do francês Jean-Louis Ernest Meissonier. No mais, figuras que a moçada está careca de ver nas apostilas escolares. 1808 e 1822 foi feita para ela.
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Gomes segue a picada aberta por tipos do gênero de Eduardo Bueno, o Peninha, autor de livros de História com a mesma leveza e profundidade encontradas na biografia da banda “Mamonas Assassinas”, de sua lavra. Nesse diapasão, Peninha e Gomes estão mais para O Guia dos Curiosos, de Marcelo Duarte, que para ser estudados em sala de aula — pretensão clara dos dois primeiros. Peninha, simpaticíssimo na TV (talvez até fora dela), está agora no canal History, que traduzido literalmente poderia significar algo decente entre as atrações televisivas. Não é. History é um aterro sanitário que abriga desde documentários bem feitos até previsões do gênero medium Mary Alves, uma revista Planeta em vídeo. O nível de Gomes é bem mais alto que os dos demais deste parágrafo. Espera-se mais dele, porém não rasteja na lama de History.
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Os depoimentos publicados na orelha sobre 1808 podem ser aplicados a 1822, descontados os exageros. Uma estudante de Porto Alegre, Patricia Morini, exulta: “Depois de ler este livro, finalmente consegui entender o Brasil”. Difícil, então, é entender a gaúcha. Stefano Tiozzo, professor na Universidade de Padova, na Itália, diz que se trata de “um dos melhores livros de História” que já leu. Ou seja, não é apenas no Brasil que professor lê pouco ou só lê besteira. É mais fácil concordar com a opinião de outra professora de faculdade estrangeira, Mônica Rector, Ph.D da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos: “Uma forma leve e divertida de estudar História sem sofrimento”. Os alunos de Carolina do Maranhão assinariam embaixo. No Brasil, estudar qualquer coisa, História inclusive, é encarado como sofrimento, uma sentença violadora dos direitos fundamentais que a pessoa tem de ser anta.
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Os fazedores de asno
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Laurentino Gomes dedica o livro “para todos os professores de história do Brasil, no seu trabalho anônimo de explicar as raízes de um país sem memória”. Conhece pouco a classe ou se refere a outro lugar ou outros professores. O nível geral dos cursos de História é abaixo da média das demais licenciaturas, que já estão no patamar da gilete no ladrilho, e a graduação se tornou um recrutamento de militantes, sobretudo para partidos autoclassificados de esquerda. Trata-se de evolução tecnológica, pois cada estabelecimento de ensino se transforma numa fábrica de asno, com a confirmação darwiniana: burrinho evoluído, misto de lesma com papagaio, sua capacidade se limita a repetir o que ouve.
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Assim, é cada vez menor o número de mestres que tentam “explicar as raízes”. Cegos pela ideologia, professores desviados desmentem o próprio 1822. Para parte deles a “independência” do Brasil se deu com a eleição de Lula 180 anos depois. O restante prega que não houve até hoje independência (“Ainda dependemos dos capitalistas!”, bradam em passeatas, algumas delas no Twitter) nem proclamação da República (“Ainda somos governados pelo Rei do Gado, pelos Príncipes dos Bancos, os Condes do Minério”, dizem em megafones, alguns deles no YouTube) e muito menos Lei Áurea (“Mais de 40 horas semanais é escravidão”, escrevem em muros e blogs).
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Estudante com esse tipo de professor fica bitolado — e nos trilhos da Centro-Atlântica, do início do século anterior, não da Norte-Sul, a ferrovia que integra o País, um sonho desde os tempos de D. Pedro, pois Lula fez em dois mandatos o que a zelite num fizero no zúltimo quiento zano. Bobagens do gênero são repetidas nas salas de aula, primeiro, para os graduandos em História e, depois, por eles, para os alunos deles. Prejuízo maior: esse aluno de História vai terminar o 3º grau e, imediatamente, ser convidado a ser professor de... 3º grau, nível superior apenas no nome, já que o Ministério da Educação autoriza gradução não-presencial, via e-mail, e, a se basear no anacronismo do que ensinam, até por caixa postal, fax, telex e sinais de fumaça. Se for péssimo acadêmico, mas tiver bom trânsito com a turma de cima, é escolhido para mestrado e doutorado. É a pós-graduação do pré-histórico.
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Gomes bisa o chavão do “país sem memória”, mas felizmente trabalha por ela. Tanto em 1808 quanto em 1822 faz sua parte tentando implantar um chipzinho no cérebro de quem tem (cérebro, não chip). Difícil. A política oficial, do Oiapoque ao Chuí, é aprovar aluno sem saber nada, para inflar os números da educação, em busca de reconhecimento internacional. Pode ser relapso, não fazer sequer uma lição, fugir da escola, enfim, aprontar o que quiser — em vão: está aprovado, passou de ano. Em vez de criticar esse sistema fajuto, apedreja-se o professor que exige o mínimo, que tenta fazer o aluno estudar. Implantou-se o paulo-freirismo em tudo, “olha, gente, não gosto que me chame de professor, porque eu não estou aqui para ensinar nada, quero é discutir com vocês, quem faltar ou tirar nota baixa pode fazer um trabalho em grupo valendo nota e presença”. Infelizmente, eis a síntese da realidade do ensino público e, em escala menor, do particular.
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Professor tem de ensinar, sim; tem de punir, sim; tem de dar bronca, sim, em estabelecimento público ou privado. Não se conhece um sujeito que tenha ficado biruta por apanhar de palmatória dentro da escola. Tudo bem, castigo físico nem para preso, agride os direitos humanos, nhenhenhém, nhenhenhém, mas é preciso mostrar autoridade, impor limite, cobrar, sentenciar. Nem a pedagogia do pescoção nem a do passe-livre para a malocagem. A formação de jumentos (referência aos dotes intelectuais, frise-se) recebe incentivo dos governos, que consideram o máximo de democracia instituir eleição direta para diretor de escola e reitor de universidade pública. Adivinhe se um professor que tenta o óbvio (fazer o aluno estudar de verdade) tem chance de ser eleito.

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“Filhos de Lula”
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Lula é analfa de mãe e beto de pai, mas por vontade, não por necessidade. Simplesmente resolveu não estudar e pronto, oferecendo péssimo exemplo. Passou mais de 20 anos sem trabalhar, recebendo gorda aposentadoria, portanto, com tempo e dinheiro suficientes para iniciar o pré-primário e concluir qualquer curso superior, mas preferiu ser feliz, destino dos tolos. Lula, ao menos, assume ser iletrado. E seus antecessores? Calcula-se que Fernando Henrique Cardoso e José Sarney sejam intelectuais, pois não lhes faltam títulos, inclusive de livros. Bom, se FHC e Sarney estão no time dos que se servem da cabeça não somente para fazer gol em peladas no Planalto, como agiriam no cargo de presidente em visita a uma nação amiga detentora de laços históricos com o Brasil?
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Imagina-se que os dois sabichões não ficariam recheando o anedotário, papelão exercido por Lula em suas muitas visitas a ditaduras amigas do alheio. Pois em duas passagens realmente apuradas por Laurentino Gomes os presidentes pós-regime militar se portaram como o transeunte que interrompe o ir-e-vir para ver um acidente só por perceber a multidão se formar. No mandato de presidente da República, FHC visitou a cidade do Porto, em Portugal, e, claro, príncipe da Sociologia que supõe ser a monarquia dos letrados, tinha de demonstrar interesse pela História. Afinal, foi ali que a voz da independência do Brasil liderou seus compatriotas contra o absolutismo. Mas não. Não FHC, o defensor do uso de drogas. Fez um papelão de quem fuma maconha estragada: pediu para ver o coração de D. Pedro.
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Sim, ele está lá, confirma Gomes: “Em 1972, ano do Sesquicentenário da Independência, seus (de D. Pedro) restos mortais foram trasladados da igreja de São Vicente de Fora, local do sepultamento em Lisboa, para o Mausoléu do Ipiranga, em São Paulo”, mas “seu coração permanece na igreja da Lapa”, no Porto. Espécie de voyeur bizarro, FHC pediu à Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, responsável por conservar o coração, segundo Gomes. Não queria saber de nada da história, já é um sabe-tudo, professor de Deus. Interessava-lhe a parte da anatomia na qual foram guardados muitas mulheres e até o Brasil inteiro.
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O país todo, não, mas o órgão cresceu. “Por um curioso fenômeno fotoquímico”, informa Gomes numa das raras passagens do livro realmente pesquisadas por ele in loco, “o coração de D. Pedro se expande continuamente dentro da ânfora de cristal em que foi depositado após a sua morte, em 1834”. Tão deformado que os administradores da igreja decidiram “resguardá-lo da curiosidade pública mantendo-o lacrado na escuridão atrás de uma parede”. FHC foi “o último brasileiro autorizado a vê-lo”. O que o Brasil ganhou com isso? Nada vezes nada. Se, em vez de FHC, o político brasileiro em visita ao Porto fosse Tiririca talvez o desejo se revelasse menos esquisito.
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Igualmente cumprindo seu papel de jornalista pesquisador, Gomes entrevistou amigos de Sarney que confirmaram: o ex-presidente violou mesmo o túmulo de Thomas Alexander Cochrane na Abadia de Westminster, em Londres. Lord Cochrane, uma lenda dos mares chamado por Gomes na capa do livro de “um escocês louco por dinheiro”, colaborou com D. Pedro na manutenção do mapa do Brasil, mas a seu jeito: saqueando tudo. Sarney tem sido muito pior para o Maranhão que Cochrane, o porém é o mercenário ter comandado a rendição dos partidários do domínio português e tomado São Luís, a capital da província. O terror do lorde foi proporcionado uma só vez, Sarney comete atrocidades contra os maranhenses há meio século.
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Nas palavras de Gomes, “em visita oficial à Abadia de Westminster”, Sarney teria chutado o túmulo de Cochrane e circulado-o falando o que em sua cachola era um xingamento: “Corsário!”. Para Gomes, “foi um momento de ira e vingança”. Noticia que Sarney disse a um amigo: “Pisei, pisei mesmo e com gosto”. Em artigo no recém-falecido Jornal do Brasil, citado por Gomes, “Sarney conta que apenas passou ao lado da tumba, enquanto murmurava a palavra ‘Corsário!’”, mas “a uma fonte, entrevistada pelo autor, no entanto, afirmou ter pisado sobre a lápide em sinal de desprezo”. Enfim, não apenas Lula vai ao exterior cometer gafes.
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Cochrane agiu em outros Estados e países, assim como Sarney. Apesar de nunca ter morado em Macapá ou em qualquer dos 16 municípios do Amapá, Sarney é um personagem pré-livro de Gomes: chefia uma corte criada e sustentada por verbas públicas, considera cada Estado uma capitania hereditária. Mas, diferente de D. Pedro, que era apenas imperador, Sarney é o dono do Maranhão, do Amapá e do Congresso Nacional. Em diversos momentos, age como se fosse proprietário do presidente da República. Qual presidente? Qualquer um, pois adere a todos. Deu Dilma? Tá dentro. Enfim, com 188 anos de atraso, 1822 chegou ao Amapá, com Camilo Capiberibe eleito governador.
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Camilo é filho de Janete e João Capiberibe, cassados pela Justiça em consequência de serem caçados por Sarney. Em 2002, João derrotou o ridículo Gilvam Borges (sua grande contribuição no Senado é trabalhar calçando sandálias), fantoche de Sarney, e se elegeu senador. Aí momentos de ira e vingança de Sarney foram muitos — mais que o manifestado no túmulo do lorde na famosa abadia londrina. Sarney não sossegou até tirar João do Senado e Janete da Câmara dos Deputados. Qual o crime do casal? Nenhum. Aliás, um: se opor ao maranhense louco por poder.
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Semanas atrás, a Polícia Federal prendeu quase o palanque inteiro de Sarney (18 sarneyzistas algemados e enjaulados) no Amapá e, talvez por isso, seus aliados tenham dançado: Pedro Paulo ficou em 4º lugar para governador, mesmo estando no cargo; e Waldez Góes também em 4º, atrás da surpresa Randolfe Rodrigues, do PSol (em 1º), de João Capiberibe (que está na Justiça reivindicando) e, aaaargh, Gilvam Sarney. Na eleição de 2006, perigou o velho cacique perder a própria vaga para Cristina Almeida, aliada dos Capiberibe e inimiga do bigodudo louco por dinheiro. Cristina Almeida, agora vereadora em Macapá e eleita deputada estadual, milita no movimento negro e é líder comunitária. Ousou enfrentar Sarney em 2002 como Randolfe o encarou neste ano. Ela, quase; ele, tchuf na cabeça dos ladrões. Se houvesse Justiça e valessem apenas os votos do povo, a bancada do Amapá no Senado seria de dar orgulho: Cristina, João Capiberibe e Randolfe, algo que nunca se viu na história desse país.
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O império das citações
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Apenas no capítulo “D. Pedro I”, com 12 páginas e meia, contadas as transcrições, Laurentino Gomes cita onze vezes o historiador Octávio Tarquínio de Sousa. E é citação em cima de citação. São seis notas (citações de autores/obras) para as nove páginas de introdução, 17 para as 12 páginas de “O grito”, nove para as 10 páginas de “O vendaval”, 22 para as 11 de “O país improvável”, 20 para as 12 de “Os brasis de D. João”, 35 nas 13 de “As cortes”, 15 nas nove em “De Minas ao Ipiranga”. Sossega que prossegue. O “D. Pedro I” tem, além das onze de Tarquínio, outras 24, com média de quase três por página, ou 35 em 13. Ufa!, as notas continuam: 34 em 14 páginas de “A princesa triste”, 29 nas 12 páginas de “O homem sábio”, 16 nas 11 de “A guerra”, 22 nas 12 de “Louco por dinheiro” (sim, tem Sarney no meio), oito nas cinco de “A Batalha do Jenipapo” 23 nas 12 de “A Bahia”. Calma, falta pouco: 21 notas/citações nas 12 páginas de “O trono e a constituinte”, 19 nas nove de “A confederação”, 20 nas nove de “A maçonaria”, 29 nas 10 de “Os órfãos”, 36 nas 16 de “A marquesa”, 14 nas nove de “O rei português”, 23 nas 13 de “Adeus ao Brasil”, 20 nas 12 de “A guerra dos irmãos”, nove nas cinco páginas do capítulo final que se chama, adivinhe a surpresa!, note a criatividade, “O fim”. Pegue a calculadora do celular e some: são 482 notas/citações em 250 páginas de texto. Para lembrar os jornalistas da “grande imprensa” quando querem sacanear alguém, vamos combinar: se excedeu nas citações.
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Observe que são capítulos curtinhos para não cansar o “leitor” que não tem costume de... ler. Ah, vou ler um capítulo por dia, são dez páginas, tá bom, né? Essa categoria de “leitor” só compra (ou xeroca, porque trabalho escolar é um capítulo para cada grupo e eu só vou ler o que tocou para mim, num é, fessô?, e tô indo agora na xeróquis do CA/grêmio) o livro a mando do professor de História e certamente passará direto pelos trechos dos créditos. Descontados essas partes, 30 e poucas páginas para 22 capítulos, dá tempo de assistir “Malhação”. Os números dos créditos/citações/notas fornecem duas notícias, uma boa, outra ruim. Qual quer primeiro? A boa? Tá. A boa notícia é ter pesquisado, ainda que basicamente em campo fácil, dando o devido crédito a quem de fato fez as descobertas ou teve o mérito do pioneirismo. A má notícia é ter apenas isso, o rol de obras/autores, sem questionar os dados, sem acrescentar novidades, sem apresentar versões conflitantes. Todos que escreveram sobre esse período da História do Brasil estão 100% corretos ou as livrarias ganharam um exemplar mais grosso da Seleções do Reader’s Digest.