22.7.07

Realismo fantástico não é para Hollywood

Will Ferrell, em Mais Estranho que a Ficção
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O gênero dramático da fantasia é perfeitamente compatível com a comédia, mas o do realismo fantástico, nem tanto. Por ignorar isso, Hollywood tem feito incursões desastrosas nesse gênero tornado célebre por Gabriel Garcia Marquez e Jorge Luis Borges.

A última foi o filme Mais Estranho que a Ficção, em que um funcionário público escravo de hábitos descobre ser um personagem literário destinado por sua autora a morrer de modo trágico. Ele procura a escritora e tenta reverter seu "destino", quando então o conflito da trama se torna um problema estético: o personagem trágico deve morrer, esse é um dos principais dogmas da arte dramática. Por outro lado, o personagem vivo, ante a iminência da morte, está redescobrindo a vida, até arrumou uma namorada e está aprendendo a tocar guitarra, ou seja, anseia por viver. O que vai ser, tragédia ou comédia? Sendo uma comédia, o filme só poderia ter um final de comédia, lógico. Acontece que no realismo fantástico nada é lógico. Uma solução melhor para o conflito seria que, ao invés de o personagem simplesmente continuar vivo porque o filme é uma comédia, a escritora morresse para que o personagem vivesse. Mas Hollywood não se aventura muito além do óbvio.

Outra dessas incursões, anos atrás, foi outro filme erroneamente concebido como comédia, o Feitiço do Tempo, em que um homem chato começa a despertar sempre no mesmo dia, não importa o que faça. Angustiado por essa estagnação temporal, ele chega a tentar o suicídio várias vezes, só para romper a aparente maldição, sem sucesso. Ele então resolve se tornar uma pessoa melhor, o que por fim desmancha o "feitiço". Se Hollywood tivesse ido mais fundo na psique do personagem, ele teria se tornado um assassino, protegido pela impunidade de não haver um dia seguinte.
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Idéias ótimas arruinadas em comédias, simplesmente porque Hollywood não conhece a diferença entre fantasia e realismo fantástico, ou porque não consegue levar este a sério.

20.7.07

O dia em que o Brasil ficou livre de ACM

A data de hoje deveria ser um feriado nacional, dia de festa e regozijo, mas até na morte esse monte de banha e prepotência que atendia pelo nome de Antônio Carlos Merdalhães fez uso de seu oportunismo atávico e orgânica desonestidade. Morrendo apenas dois dias depois da trágica queda do avião da TAM em São Paulo com quase duzentas vítimas, quem ousará demonstrar alegria ante o desaparecimento de um dos piores símbolos da rapina e do primitivismo sócio-econômico-político que assolam esta pobre ex-colônia há cinco séculos?

8.7.07

Impropério Romano

Cleópatra não era tão vagabunda, nem tampouco Otávia, que nunca deu para o Agripa, muito menos Ácia, que jamais deu para Marco Antônio, o qual portanto não foi expulso de Roma por comer a mãe de Otaviano, que por sua vez não estava em Roma quando Júlio César foi morto no teatro de Pompeu, não no Senado, por Bruto, que não vivia com a mãe, Servília, a qual não odiava César tanto assim, na cidade em que os cidadãos não se tratavam por “cidadão”, onde os judeus ainda não chamavam seu deus de Hashem, pela qual o rei deles, Herodes, não desfilou vestido como sátrapa otomano, e para onde Cesárion, filho de Cleópatra, não retornou vivo do Egito.

Apontar as inúmeras inexatidões históricas da excelente série Roma, da HBO/BBC, pode ser tanto teste de conhecimentos quanto exercício de pedantismo, mas estimula a pertinente discussão dos limites da ficção e da História na ficção histórica. Qual a vantagem de despender milhões de dólares para recriar uma época nos mínimos detalhes e, ao mesmo tempo, falsear os fatos ocorridos nessa época para fins dramáticos?

Com as devidas diferenças, Shakespeare fez o mesmo, a ponto de Churchill ter declarado que aprendera história da Inglaterra através das peças do Bardo. Ou seja, Churchill não aprendeu história da Inglaterra com Shakespeare; ele aprendeu Shakespeare, com a história da Inglaterra como pretexto.

Da mesma forma, Roma realiza uma recriação de época das mais realistas, para veicular uma peça de ficção; personagens verídicos e fatos históricos servem de mero suporte para dar credibilidade à imaginação dos roteiristas. O propósito não é ensinar História na TV; para isso estão aí os documentários. O propósito é tão-somente divertir, e a credibilidade mencionada garante que esse divertimento seja de um nível mais elevado que outras obras de teledramaturgia, como novelas e enlatados.

Para alguns, Roma reproduz impecavelmente o espírito da época, que seria mais importante que o rigor dos fatos. Por exemplo, sabemos que Augusto tentou, sem muito sucesso, implantar medidas moralizantes no hedonista povo romano, semelhantes aos atuais apelos do Vaticano para que os católicos europeus tenham filhos. A série pretende que o moralismo de Augusto teria origem na sua repulsa pela conduta imoral da mãe, e não na sua visão de estadista de que toda nação forte é conservadora (embora nem toda nação conservadora seja forte). O Bruto da TV mata César por instigação da mãe, embora o dos livros fosse casado. Segundo essa vertente, o mundo ocidental tornou-se o que é porque seus artífices não sabiam dizer “não” às suas mamães.


Destarte, a ficção histórica quer transformar conflitos históricos em pessoais, como forma de aproximar a História das pessoas que não a fazem. Tanto isso é verdade, que pessoas que fazem História preferem-na à ficção histórica; Napoleão devorava Plutarco e desprezava as peças históricas de Voltaire. Pois toda ficção requer imaginação para ser apreciada, e os que governam os destinos dos homens não podem dar-se ao luxo de ter imaginação, a qual, mesclada ao poder, sempre degenera em loucura, Nero e Heliogábalo que o digam.